06/01/2011

Pedaços de Mim…

Publicado em agosto 11, 2005 por Nora Borges

A sala estava cheia de caixas de papelão, etiquetas e rotuladores de cores variadas…

Enquanto eu desfazia as estantes de livros e tentava não pensar que teria que separar-me deles, a minha vida ia passando diante dos olhos como um filme antigo, em preto e branco…

Olhava o livro, lembrava onde o tinha comprado, em que época havia lido, que sentimentos havia despertado em mim. Alguns iam direito para uma das caixas. Poucos, devo admitir. Outros, muitos, ficavam ali na mão, pedindo para serem abertos, relidos, mostrando as notas feitas a lápis nas margens de algumas páginas, reagindo a serem trancados entre quatro paredes de papelão por um tempo indeterminado.

Um sofrimento!

Eu já sabia que não poderia levá-los comigo, pelo menos de imediato.

Mas onde guardá-los?

Pensei nele. Um dos meus irmãos que adora ler. Mas os livros em sua casa, depois de lidos (apenas por ele), eram objetos sem categoria.

Perdiam qualquer batalha por algum status na família. Ficavam guardados numa antiga e fria despensa, misturados com trastes velhos.

Sua esposa adorava que as estantes de sua sala fossem super-clean. No máximo uns pequenos objetos decorativos de vidro transparente, um ou outro vaso com arranjos de flores secas, belos candelabros. E só.

- Livros? Na sala? Nem pensar! Dizia que cheiravam a papel velho e guardavam toda a poeira do mundo.

Pois então… os maravilhosos livros de meu irmão dormiam na gélida despensa mesmo. E digo dormiam porque sequer estavam dignamente em pé, com o lomo aparecendo. Jaziam deitados. Todos. E de frente.

Irreconhecíveis!

Por cima de seus corpos, um sem número de objetos: sapatos velhos, cabides quebrados, bacias furadas, espanadores rotos, sacos plásticos vazios… “Pedacinhos de morte”, como diria Cortázar.

Para lá eu não mandaria um só dos meus queridos pedaços de vida…
Escolhi apenas os didáticos que pudessem ajudar seus filhos nos exames de vestibular. Esses sim… estariam espalhados pelos quartos dos meninos, até que não fossem mais tão úteis e acabassem no Cemitério dos Esquecidos. A terrível e bolorosa despensa-trasteiro-biblioteca.

Separei também Obras Completas de Freud, que ele pediu-me com os olhos brilhantes, mas só com a promessa de que ficassem na prateleira do quarto de um de seus filhos, se esse concordasse. Não podia sequer imaginar que Totem e Tabu ou a Interpretação dos Sonhos fossem enterrados naquele monte de tranqueiras!

Bueno, pensei em meu outro irmão. O Pescador de Ilusões.(Um dia eu explico esse apelido.) Essa criatura nunca leu um livro inteiro. Mentira minha. Leu sim. Um. O Alquimista…

Suas estantes são cheias de troféus de pesca, cinzeiros e estatuetas horríveis. Mas ele as adora!

Bueno, não custava tentar.

Suspirei quando ele disse que não tinha espaço para guardar meus livros. Eu já sabia… suspirei nem sei por que.

Depois de trocar mil vezes de opinião sobre o que fazer com eles, revendo preços das companhias aéreas, navios, correios, passando inclusive pela encantadora idéia de tirar tudo das malas e transformá-las numa biblioteca ambulante (as roupas são perfeitamente compráveis em qualquer parte do mundo) e descobrindo que o peso das pobres coitadas quadruplicava sem resolver a questão, – cabiam tão poucos! – voltei às caixas. Separei tudo de novo e criei categorias para eles. Categorias afetivas, diga-se de passagem! Deixei tudo ali, no meio da sala, até conseguir pensar com calma. Tarefa difícil naqueles dias.

Ainda tinha que saber o que fazer com as cartas, bilhetes, fotografias… Antes sabia que podia contar com a cumplicidade e discrição da Princesa.

Mas… agora que ela não vivia mais, como deixar minha vida assim, por escrito, nas mãos de outro alguém que não fosse ela??!

Meu coração parava quando olhava para o armário e via a enorme caixa de cartas…cópias das enviadas junto com as recebidas, no mesmo envelope. Maços e maços envolvidos em fitas. Meus sentimentos escancarados, escritos em épocas distintas para os personagens importantes de meu passado… Mas esse capítulo merece um post a parte.

Concentrei-me nos livros. Tinha que encontrar uma saída.

Finalmente tive uma idéia fantástica! Chamei uma amiga querida (ela, aquela que rondava minha porta nos dias de escuridão) e fiz uma proposta semi-indecente. Ela ficaria com meus livros mais queridos (muitos) em sua casa e em lugar de honra (por favor!) e assim que eu pudesse iria buscá-los, pouco à pouco. O resto eu deixaria com o Pescador de Ilusões, mesmo sabendo que seriam abandonados nas prateleiras do quarto de serviço. Um lugar arejado, pelo menos! Seriam resgatados assim que eu pudesse.

Pois sim…ela disse sim. Mas não poderia quitá-los das caixas. Ainda não tinha casa. Receberia seu apartamento em alguns meses, mas não poderia mobiliá-lo até que pagasse as últimas prestações. E não sabia quando poderia viver nele.

Foi aí que minha idéia cresceu. Ofereci-me para mobiliar sua casa. E emprestei tudo o que estava destinado a um depósito: lavadora de roupas, geladeira, fogão, micro-ondas, televisão, cama de casal e solteiro, mesinhas, luminárias, condicionador de ar, estantes, objetos de cozinha, etc… e livros. Muitos e deliciosos livros. Sabia que estaria tudo muito bem cuidado. E vivo! Respirando, fazendo parte do seu cotidiano.

Que mais precisa uma pessoa para começar a vida num apartamento novo e sozinha?

Sim, sei. Música. Isso ela já tinha, ainda bem.

Seus olhos faiscavam de alegria. Já podia contar com a casa montada!
Agradeceu-me contentíssima! Que graça! Ela me faz o favor e ainda agradece!?

Disse-lhe então que eu deixaria com ela só mais uma coisinha. Grande, mas que não ocupava espaço: toda a minha gratidão. Na verdade, nossa. Pois creio que os livros também agradecem a vida que estão levando…

Soube que está lendo como nunca… e sorrio feliz com a notícia!

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