24/11/2010

Um museu em minha memória

Escrito por Melquisedec Pastor do Nascimento

Sou de origem social muito desvalida. Filho de pai e de mãe proletários, pobres de Jó. Ele, Joaquim Pastor do Nascimento, fazia chinelos para mandar vendê-los de porta em porta, e fazia anéis de chifres de boi, de metal e de aço, contra o vento mau, para vendê-los nas feiras e nas festas de igrejas. E consertava sapatos, relógios, guarda-sol e sombrinhas. Consertava quase tudo em seu muquiço do Caranguejo, nos Remédios. Não consertou sua vida. Também trabalhava cantando. Mas, só cantava Pé de Anjo, Vitalina e Meu Boi Morreu: “A mulher e a galinha/ São dois bicho interesseiro/ A galinha pelo milho/ E a mulher pelo dinheiro”; “Bota pó vitalina, bota pó/ Que moça véia não sai mais do caritó”. “O meu boi morreu...” Era artista, conforme declarou no cartório, ao fazer o registro do meu nascimento. Não me batizou. Nasci no Bongi, na rua da Bacia, por trás do chafariz, no lado esquerdo da estrada dos Remédios, dentro da lama dos mangues. Desempenado, dava gosto vê-lo caminhar pela estrada dos Remédios com o guarda-sol aberto, a modo de pálio. Uma vez, voltando do trabalho, vi ele descendo a ponte de Afogados. Eu vinha de bonde, ele vinha a pé, caminhando contente, alegre e satisfeito. Desci no Colégio Moderno e o acompanhei até lá em casa no beco do Quiabo, logo adiante. Ele vinha da rua Direita onde foi comprar cabedal para fazer os chinelos e botar meia-sola nos sapatos. Não me deu nem um vintém... Ela, Laura Francisca dos Santos, cantando, costurava para fora, em cima de uma velha pé-de-aranha. Era bonita e cantava divinamente. Costurando, criava os filhos de dois pais, separada que era. Quando comecei a registrar na memória meus fatos existenciais, morávamos eu e meus irmãos com minha mãe...

(Onde andará a velha Lalu, que não me deu apenas a vida física, meu irmão e minhas irmãs, onde andarão? Tonho, que vendeu a coroa de ouro da boca para comprar “figo” de alemão pra gente comer? Com ele quase aprendi a tocar violão. Não aprendi, porque ele não passou do lá menor: quem quer que, quem quer que, quem quer que... Troquem os que... Nem, que me carregava para o mangue pra pegar aratu, caranguejo, siri de loca e guaiamum, e para a maré pescar, e para pegar camarão vila franca e siri corredor. E para a crôa para tirar marisco, sussuru e unha-de-véio. Nininha. Eu e ela, Tomé e Bebé, porque só andávamos juntos. E Manel de Dária? O Jean Valjean, que trazia carne de Ceará da rua das Florentinas para a gente comer. Às vezes, chegava lá em casa. Não tinha nem sal, na cumbuca... Vou agir, ele dizia. E voltava da rua das Florentinas. Disse-me anos depois. Sem saber, a gente também comia roubados... Onde andará Mané Abinadabe?)

Morávamos na vila de São Miguel, no bairro recifense dos Afogados, a imensa pocilga de Dr. Ladislau. Ali mãe adquiriu um lote, pagando mensalmente 2$000 pelo chão, onde fez o mucambo onde a gente morava. Do rio Tejipió, e dos mangues adjacentes, muitas vezes, tirávamos o de-comer. Eram nossa dispensa. Para me desasnar, mãe me matriculou na Escola Particular Mista de dona Julieta Baptista, na terceira rua. Lá, pelas mãos bondosas de dona Julieta, aprendi o bê-a-bá, decorando a Carta de ABC de Landelino Rocha – “A preguiça é a chave da pobreza”; “É dado aos pobres o sagrado direito de importunar os ricos”... – a ler, escrever, pelos Cadernos de Caligrafia Vertical, e contar, pela taboada de Landelino, ajudado pela minha boa memória – comi muito: peixes, moluscos e crustáceos daquele rio-maré. Fosfatizei-me. Chamavam-me “Cabeça-de-Rui Barbosa”.


(Onde andará minha professora, que me abriu os olhos para a vida? Onde andará o inspetor de ensino, que me pôs na blusa a fitinha verde e amarela, quando me passou com “distinção e louvor?” Solenidade arranjada para que eu também pudesse participar. Os meus colegas de classe, Maria Isabel, minha primeira namorada – “Eu tenho n’alma um jardim cheio de flores/ Imagem dos meus amores/ Só com nomes de mulher” – Alcides, seu irmão, Mário, encapetado: “Julieta fugiu, Julieta fugiu”, Arnaldo Canuto, onde estarão? E tantos outros que até de minha memória fugiram? Fiquei para contar a história.)


Minha mãe, analfabeta, tirava sua sabedoria de vida dos ditados populares: “Fazes o bem, não cates a quem”; “Junta-te a um bom, serás igual a ele. Junta-te a um mau, serás pior do que ele”; “Mente desocupada é oficina de Satanás”. Dela, herdei o bom gosto. Era bonita e se enfeitava todinha, da cabeça aos pés: “Quem não se enfeita, por si se enjeita”, dizia ela. E o estoicismo: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Dos mangues, cheios de estrepes, a prudência. Da semifome e da sede de saber, a solidariedade aos desvalidos, carentes de justiça, e para com os sequiosos de aprender. Por isso, sou livreiro.


Não sei se o velho Quinca Pastor teve escola. No seu cochicholo do Caranguejo, vi exemplares da revista O Pensamento, do Almanaque do Pensamento e um da novela espiritualista A Predestinada, de Pedrina Lima, da Empresa Editora O Pensamento. Tenho um da 3ª edição, ano em que ele morreu. 23 de junho de 1938. Lia a Bíblia. Meu nome... Ali vi uma edição protestante da versão de Antônio Pereira de Figueiredo, “edição aprovada em 1842 pela Rainha D. Maria II com a consulta do Patriarcha Arcebispo eleito de Lisboa”. Creio ser a de 1919. Foram os primeiros livros inteiros que conheci. Antes, na vila, vira pedaços da edição católica ilustrada por Gustavo Doré. Lembro-me de quatro gravuras: dois homens carregando, num pau, ombro a ombro, um cacho de uvas da terra onde mana leite e mel; Sansão carregando a porta de Gaza; a morte de Sansão, destruindo o templo dos filisteus: “Morra eu e todos os filisteus” e Daniel na cova dos leões. Valorizam a Galeria Iconográfica do velho Pastor, uma parede na sala de frente apenas rebocada, figuras da revolução brasileira: os 18 de Copacabana, os tenentes, Cleto Campelo morto e, destacada, a do Cavaleiro da Esperança um tanto desbotada. Eram recortes de jornais. Não sei se Luiz Carlos Prestes, depois, teve a imagem esmaecida na admiração do meu pai. Dele herdei o sentimento anti-religioso: “Deus não precisa de intermediários”. Mt 5.5-6. E, por causa dele, ver na Bíblia monumento literário: a tradução de João Ferreira de Figueiredo, revista e corrigida.


(Onde andará meu pai? Contente, alegre e satisfeito, quando doente, me viu pela última vez. Meu pai era materialista.)


Com sete meses de estudo, aprovado com distinção e louvor, saí da escola de dona Julieta para a Escola da Vida. Dizer-lhe presente era necessário. Aumentar a renda familiar era preciso. Só, acostumei-me a ler lendo folhetos, almanaques de farmácias, jornais e, depois, livros. Eu era a criança, o menino, o rapaz. Ser o Homem era necessário. Dizia-me o ambiente, diziam-me as circunstâncias, diziam-me as leituras. Disseram-me os livros. Os livros levaram-me ao caga-sebo do negro Manoel Belarmino da Silva, Livraria Rangel, rua do Rangel, 132, pé-de-escada. Antes, já o conhecera na feira de Afogados, negociando, na calçada da igreja de N. S. da Paz, folhetos, revistas usadas, recortes de revistas de cinema, álbuns de cobói e quadrinhos de fitas de cinema. Era o negro Mané Art Accord, um Cowboy negro... Quando fechava o estabelecimento, dizia: “Voltem na próxima semana...” Reencontrei, em 1934, vendendo o mesmo e também livros usados, num estrado na calçada do mercado de São José, onde me vendeu, fiado, O Conde de Monte-Cristo. Foi o primeiro livro que li. A ele comprei os meus primeiros livros. Obras infantis de Monteiro Lobato, de José de Alencar, romances de aventuras e livros de auto-ajuda, então obras educativas. Marden, “fazer da vida uma obra prima”; Samuel Smiles e Edward Earle Purinton, “a desgraça da humanidade é a quantidade enorme de homens semicrescidos”. De um caixão de querosene, fiz a minha estante. Eu tinha 17 anos. Disse a minha mãe que ele um dia iria para um museu em minha memória... Desconjuntou-o o tempo.

Comprando e lendo, tornei-me candidato a ser seu empregado: “a primeira vaga é sua”. Que veio no dia 7 de dezembro de 1937. Véspera de festa de N. S. da Conceição, a festa do Morro. Ele não perdia uma. Comecei ganhando 60$000 por mês. Na véspera de Natal, fui aumentando para 80 e ganhei de presente um relógio de algibeira Nice Watch. Comecei bem. Antes de trabalhar para ele, já conhecia todo o seu acervo. Mas não servia a ele. Servia a mim mesmo. Belarmino era semi-analfabeto. Lia, entretanto. Foi o primeiro intelectual que conheci. Também gostava de livros. Lastimou-se quando vendeu A Vida de D. Fr. Bartholomeu dos Mártires. Primeira edição, 1619. De leituras pessimistas: Nietszche, Schopenhauer, Albino Forjaz de Sampaio, Augusto dos Anjos; e contestadoras: Não Creio em Deus, Cristo Nunca Existiu, Jesus Cristo É Um Mito, A Razão Contra a Fé. Lia, bebia e recitava: “Vida, sorriso que passa/ Desventura, desgraça/ Um grande paradoxo universal/ A derrota do bem, a vitória do mal”. Bebia muito – “ou acabo com ela, ou ela acaba comigo”. Também dizia. Perdeu a parada. As leituras de Manoel Belarmino influenciaram o meu pensamento. O senhor Manoel Belarmino da Silva me deu a oportunidade de ser livreiro. De trabalhar em “defesa e à promoção do livro antigo, do livro esquecido, do livro raro”. Gilberto Freyre. Estou consciente de que “a profissão de livreiro não é mais profissão comercial. Mas, sim, uma tarefa de alcance intelectual em que se pode observar uma enorme proliferação de graus”. Se eu concordasse com Praxiteles, seria hoje tirador de caranguejos ou botador de meia-sola.