23/02/2016

Ugênio

Não entendia muito bem o que estava acontecendo; lembro da casa na Boa Vista, o vizinho ouvindo "na tonga da milonga do cabuletê". Laura me mandando arrumar os brinquedos, íamos morar na casa de vovó! Ainda não tinha arrumado e ela volta dizendo que não íamos mais. Acho que mamãe desistiu, para nosso desespero. Casa de vó é muito bom!

Alguns flashes numa casa em Caixa D'água; diziam que era mal assombrada; muito mosquito.

Depois, morando no IPSEP. Esperava Réu toda sexta-feira na janela, atucalhando o ônibus. Evandro era meu ídolo, chegava lá em casa cada vez com um carro diferente. Até uma Kombi! Aquela Kombi pra mim foi o máximo. Lembro de uma festa de aniversário, com luz negra e tudo. O tricampeonato mundial de futebol em 70; comi muita banana.

Minha primeira lembrança d'Ugênio foi num daqueles parques que tinham na Avenida Boa Viagem. Ele e mamãe conversando e eu brincando com uns meninos no parque. Um perguntou: "São seus pais?" Respondi: "Não! Aquela é minha mãe e aquele é o namorado dela". Isso em 70/71! Todos chocados.

Resolveram se casar e mamãe veio nos explicar que íamos morar no Rio de Janeiro, em Casacadura. Que nome horrível, mas se é no Rio, deve ser bom. E lá fomos nós. Na despedida, na Rodoviária, no Cais de Santa Rita, recebi muitos brinquedos e dinheiro e disse a mamãe: "tô gostando desse negócio de me mudar".

Ugênio viajava muito, era taifeiro da Marinha do Brasil. Passava meses fora de casa e quando voltava, nos enchia de presentes. Mas não era isso que nos fazia gostar dele. Ele era como nós, criança. Brincávamos o dia inteiro. De tudo. De esconde-esconde, peão, futebol, papagaio. O pouco que sei dessas brincadeiras, foi ele que me ensinou. Ah, tinha o medo que ele tinha de cobra e a gente se aproveitava disso pra dar susto nele. Era a época de Selva de Pedra e só tocava a musica tema de Regina Duarte e Francisco Cuoco no rádio. Calor dos infernos. À noite jogávamos água na parede pra ver se esfriava mais um pouco. Era uma farra.

Eu e Laura tínhamos medo de dormir no escuro. Sempre pirangueiro, Ugênio comprou uma lamparina com querosene e deixava ela ligada a noite, mas com aluz bem fraquinha. Uma vez pedi a Laura pra "aumentar" a luz e ela botou no máximo. Acordamos tossindo, com o quarto e nossos rostos todo preto de fumaça. Pena que naquela época fotografia era coisa difícil. Todo mundo pro banheiro!

Nessa época nasceu Juninha, nosso xodó. Lembro dela chegando em casa, no colo de mamãe. Ugênio estava viajando e me senti no direito de ser o homem da casa e cuidar das três. Só eu sabia disso, claro.

Mudamos de novo, dessa vez pra Belém. Primeira parada, a pensão do Cidadão do Céu. Depois fomos morar no centro, numa vila, onde a diversão era contar os ratos que passavam a noite. Uma única vizinha tinha telefone e fazia questão que todos soubessem disso, gritando quando o telefone tocava. No rádio era a época de "Comprei um quilo de farinha, pra fazer farofa, fazer farofa, fazer farofa fá!" De lá fomos para a Nova Marambaia, vila popular muito agradável, pelo menos eu achava, fiz muitas amizades, inclsuive com os filhos do vizinho, Sr. Golobovante. Ugênio nos levava pra passear no zoológico, nos parques de diversão, bons tempos. Lembro de uma foto de Juninha pixototinha, com as pernas grossinhas.

Taifeiro. Não fazia a menor ideia do que era isso e Ugênio me levou pra passar uma noite no CIABA o setor onde ele estava trabalhando. Não queria mais voltar. Comida à vontade e comida que na época, nem sabia que existia. Passei um dia de Rei, com direito a andar de ônibus da Marinha, com Ugênio dirigindo. Pense num perigo!

Laura foi embora. Réu esteve lá (de avião!) e levou pra estudar em Recife. Sofremos muito mas sabíamos que era melhor pra ela. Nesse dia, andei de taxi pra ir ao aeroporto. Um Corcel GL!

De lá fomos para Fortaleza. Mais perto de Recife, a família vinha em peso nos visitar. Era uma festa! Evandro, como sempre, causando. Veio de carro no seu Corcel GT 1970, preto e branco, uma belezura. Vovó e vovô vieram de trem, o Asa Branca. Não lembro quanto tempo ficaram, mas sofri muito quando foram embora. Lembro de estar varrendo o terraço e vi um cabelinho branco de vovó (vovô era careca, não devia ser dele) e danei-me a chorar. Ugênio e mamãe me confortando. Logo voltaremos pra Recife.

Voltamos pra Recife em 1977, acho. Fui estudar no Colégio Santos Dumont, em Boa Viagem e morava em Olinda, Jardim Brasil. Percurso grande, Réu nos convenceu a ir morar com ela, na Boa Vista e lá fui eu, morrendo de medo de papai. Diminui o contato com Ugênio. Mas sempre ia pra casa de mamãe nos fins de semana. E tome brincar.

Hoje Ugênio se foi. Um alívio, pois ele estava sofrendo muito. A ida dele me entristeceu, claro, mas ele era tão do bem, que a gente lembra mais das brincadeiras dele, as imitações do gato, a careta na hora das fotos, o aperreio quando se falava em cobra, jogando dominó sozinho, sempre fazendo a "fézinha" no bicho.

Antônio Eugênio Chaves, Ugênio, o cara que levava a vida na flauta, sempre de bem com a vida, vai em paz e obrigado por fazer parte de nossas vidas. Poucas vezes eu disse, mas eu sempre te amei.

03/02/2016

A persistência do ódio na sociedade brasileira

Por Leonardo Boff*

03/02/2016

É fato inegável: há muito ódio, raiva, rancor, discriminação e repulsa na sociedade brasileira. Ela sempre existiu de alguma forma. Ou alguém acha que os milhões de escravos humilhados e feitos “peças” e as mulheres à disposição da volúpia sexual dos patrões e de seus filhos, não provocava surdo rancor e profundo ódio? É o que explica os centenas e centenas de quilombos por todas as partes no Brasil. E o ódio dos patrões que com o chibata castigavam seus escravos desobedientes no pelourinho?

O ódio pertence à zona do de mistério. A própria Bíblia não sabe explica-lo e o vê já presente desde o começo, no jardim do Éden; o primeiro crime ocorreu com Caim que por inveja, que produz ódio, matou a seu irmão Abel. O mandamento era claro: ”Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”(Levítico 19,18; Mateus 5,43). O ódio é inimigo dos homens e de Deus e ele semeia a cizânia na terra (Mt 13,19).

Mas eis que vem Jesus e reverte a lógica do ódio: ”Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”(Mt 5, 44). Ele mesmo sucumbiu ao ódio de seus inimigos mas, aceitando livremente a morte, “venceu a morte pela morte” e assim derrubou “o muro da inimizade que dividia a humanidade”(Ef 2,14-16). Prega e vive o amor incondicional para amigos e inimigos. Inaugurou assim uma nova etapa de nossa humanização.

Mas esse ideal nunca se transformou em cultura nos países cristianizados. Estamos ainda no Velho Testamento do “olho por olho, dente por dente”.

No Brasil a raiva e o rancor histórico foi acrescido depois das eleições de 2014. Houve quem não aceitou a derrota e deslanchou um torrente de raiva e de ódio que contaminou não apenas o partido vencedor, mas toda a sociedade. Inegavelmente criou-se um consenso ideológico-político de alguns meios de comunicação que, com total desfaçatez, difundem esse sentimento.

O que leva um radialista da Rádio Atlântica FM, ligada à RBS gaúcha, conclamar a população a “cuspirem na cara do ex-Presidente Lula” senão um ódio explícito e incontido? A verdadeira perseguição judicial que Lula está sofrendo, tentando enquadrá-lo em algum crime, é movida não tanto pela fome e sede de justiça, mas pela vontade de punir, de desfigurar seu carisma e liquidar sua liderança. Grassa um maniqueísmo avassalador que amargura toda a vida social. Bem dizia Bernard Shaw: ”o ódio é a vingança dos covardes”.

Mas tentando ir um pouco mais a fundo na questão do ódio, precisamos reconhecer que ele se enraíza em nossa própria condição humana, um feixe de contradições. Somos, por natureza, e não por desvio de construção, seres contraditórios, compostos de ódios e de amores, de abraços e de rejeições. É a escolha que fizermos que irá dar rumo à nossa vida: ou a benquerença ou a aversão. Mesmo escolhendo o amor, o ódio nos acompanha como uma sombra sinistra. Se não cuidamos dele, ele invade nossa consciência e produz sua obra nefasta.

Esse realismo o encontramos na Bíblia. Mas também num pensador como Bertrand Russel que observou com acerto: ”o coração humano tal como a civilização moderna o modelou, está mais inclinado para o ódio do que pra a fraternidade”. Lógico, se ela colocou como eixo estruturador a concorrência e não a colaboração e a luta de todos contra todos em vista da acumulação privada, entende-se que predomine a tensão, a raiva, a inveja a ponto de o lema de Wall Street ser :”greed is good”: a cobiça é boa.

Mas há um ponto que precisa ser referido, observado já por F. Engels quando escreveu uma introdução ao livro de Marx sobre “A luta de classes na França”: ”Se houver alguma possibilidade de as massas trabalhadoras chegarem ao poder, a burguesia não admitirá a democracia sendo até capaz de golpeá-la”. Ora, através de Lula, o PT e seus aliados, vindo das massas trabalhadoras, chegaram ao poder. Isso é inadmissível pelos “donos do poder”(R. Faoro). Estes procuram inviabilizar o governo de cunho popular, desconsiderando o bem comum.

Aqui valem as palavras sábias do velho do Restelo de Camões: “Ó glória de mandar, o vã cobiça/Desta vaidade a quem chamamos fama./Ó fraudulento gosto, que se atiça/Com uma aura popular que honra se chama” (Cântico IV, versos 94- 95). Por detrás da busca ”da glória de mandar” e do poder, revestido de raiva e de ódio, se esconde, atualmente, a vontade daqueles que sempre o detiveram e que agora o perderam e fazem de tudo para recuperá-lo por todos os meios possíveis.

*Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu:Virtudes por um outro mundo possível(3 vol.),Vozes 2005.